Eliana Corrêa Aguirre de Mattos e Fabiana Barbi Seleguim
Água na torneira, acessível, abundante, potável, todo mundo quer. Tem em Jundiaí? Notícia veiculada recentemente nas mídias traz apreensão para quem responderia com um “sim” sem pestanejar.
Levantamento de dados oficiais dos municípios no Ministério da Saúde, feito pela agência Repórter Brasil, mostrou que Jundiaí registrou na água fornecida à população, pelo menos uma vez entre 2018 e 2020, a presença acima do limite de segurança de 4 substâncias de alto risco à saúde, cancerígenas, como selênio (sulfeto de selênio, usado em vernizes, fertilizantes, shampoos); clorpirifós + clorpirifós-oxon (agrotóxico, que comentaremos abaixo); ácidos haloacéticos-total (subprodutos de desinfecção, que têm como fonte o excesso de cloro na água) e trihalometanos total (inclui o clorofórmio, componente de solventes, agrotóxicos etc.
O DAE (Departamento de Água e Esgoto), órgão gestor do município, emitiu nota informando que tais resultados já foram corrigidos e que em 2021 nenhuma não-conformidade, ou seja, índices acima dos parâmetros estabelecidos para tais substâncias, foi registrada.
Ah, então o problema está resolvido. Puxa! Será?
Convido você, leitor, a olharmos juntos para um deles, o clorpirifós.
Não é à toa que é um dos campeões na detecção de quantidades irregulares nos testes feitos por órgãos oficiais, como o PARA (Programa de Análise de Resíduos em Alimentos), da Anvisa, em supermercados e na água que abastece centenas de municípios brasileiros.
Isso tem algumas razões bem peculiares. O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo explica: “Veja os casos de deriva de agrotóxicos. O sujeito aplica o veneno na sua lavoura e a seis quilômetros de distância tem gente sendo intoxicada. Outro exemplo é que usamos no Brasil um bilhão de litros (desses produtos) por ano e tudo isso vai parar na água. (…) Os estudos realizados sobre a qualidade da água no Brasil apontam que pelo menos 25% dos municípios analisados têm até 27 tipos de venenos na água. Então, a possiblidade de se contaminar, mesmo estando longe das lavouras, é grande” (Brasil de Fato, 2022).
Outra razão é a econômica: o clorpirifós é molécula de síntese mais antiga, até já perdeu a patente e assim, mais barata, é aplicada em vários outros cultivos que não os “recomendados”, pontua a pesquisadora da Fiocruz, Karen Friedrich.
Sua toxicidade não é “desprezível”: um estudo de 2012 da Universidade de Columbia (EUA) analisou um grupo de 40 crianças de até 11 anos que foram expostas ao clorpirifós durante a gravidez. Quanto maior foi o nível de exposição, menor era o tamanho do córtex cerebral delas. O estudo identificou que quando essas crianças chegaram aos três anos de idade, elas passaram a apresentar uma série de deficiências motoras e cognitivas, sendo a mais comum o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Ao chegarem aos sete anos, constatou-se a redução do QI. Essas evidências foram suficientes para proibi-lo nos EUA, União Europeia, Argentina.
Aliás, o assunto agrotóxico tem outros vieses, que passam pela precariedade da assistência técnica ao agricultor, ausência de produtos específicos para todas as culturas comerciais (o que faz com que ele lance mão de pesticidas “do mercado” para não perder a safra) e pelo comércio clandestino, cujo nome já diz tudo: preços mais baixos, sem controle de compra, de venda e de descarte das embalagens.
Na contramão do planeta, em 2016 o Brasil liberou em 277 registros; em 2017, 404; em 2018, 449. No atual governo, houve liberação de 474 (2019) e em 2020, o número subiu para 493; batendo o próprio recorde, ao final do mesmo ano aprovou o registro de 550 novos agrotóxicos. E em 2022, o “Pacote do Veneno” foi aprovado na Câmara dos Deputados, apesar da mobilização da sociedade e dos cientistas.
Mas, claro, dá para piorar (como diz o ditado do pessimista, ou realista, como queiram): nesta matéria sobre a água no município de Jundiaí figuram mais de 30 substâncias presentes na água, mas “dentro do limite de segurança” (sic), alertando o leitor que são “substância(s) com o(s) maior(es) risco(s) de gerar doenças crônicas, como câncer”. Cabe debater o tal “limite de segurança”, mas isso é assunto para outra prosa.
Passando os olhos, leitor, encontramos o DDT (dicloro-difenil-tricloroetano), pivô do intenso debate na sociedade americana em 1962 instigado pela bióloga Rachel Carlson. Contundente em suas pesquisas sobre os efeitos devastadores do DDT à saúde, publicadas no livro “Primavera silenciosa”, culminou na proibição, já à época, de sua produção e uso nos EUA. Até hoje, segue proibido em muitos países, além de outros pesticidas que figuram na listagem publicada pela agência Repórter Brasil.
Falecida precocemente, dois anos depois, vitimada pelo câncer, também Carlson enfrentou duras represálias da sociedade americana. Outro não está sendo o caminho da pesquisadora e professora da USP, Larissa Mies Bombardi, que publicou o “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Européia” (FFLCH/USP) em 2017. Pelo exclusivo motivo do tema de sua pesquisa teve que se refugiar em outro país pelas ameaças de morte a si e à sua família.
Puxamos aqui um dos fios desse novelo de substâncias de alto risco à saúde encontradas na água. É preciso igualmente atentar para aquelas que estão presentes em vernizes e solventes e até mesmo nos shampoos que se utiliza diariamente e que passam despercebidas.
Então, caro leitor, aceitaremos o “limite de segurança” oferecido pelas dosagens de agrotóxicos e outras substâncias nocivas presentes na água que bebemos e que damos de beber, fonte da vida que tanto nos é preciosa?
Referências:
- https://www.brasildefato.com.br/2022/01/12/governo-bolsonaro-bate-proprio-recorde-e-libera-uso-de-550-novos-agrotoxicos-em-2021#:~:text=Mas%20o%20governo%20de%20Jair,registro%20de%20550%20novos%20agrot%C3%B3xicos.
- https://reporterbrasil.org.br/2021/10/brasil-continua-a-vender-agrotoxico-banido-nos-eua-e-que-pode-diminuir-qi-de-criancas/
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Sugestões de leitura:
- CARLSON, R. Primavera silenciosa. 1ª.edição, São Paulo: Gaia, 2010, 327p.